A Resolução 59 é uma etapa no caminho que o regulador planeja trilhar. O destino final é a punição ao greenwashing
função social de uma companhia está prevista na legislação societária brasileira desde 1940. Em 1976, foi incorporada à Lei das S.As., e em 1988 ganhou espaço na Constituição Federal. Seu lugar no campo de preocupações do regulador do mercado de capitais brasileiro, porém, só seria ocupado décadas adiante. Mais precisamente quando a vida na Terra seria chacoalhada pela pandemia de Covid-19 e o tema ESG ganharia os holofotes nas decisões de investimento. Em dezembro do ano passado, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por meio da Resolução 59, exigiu das companhias uma série de informações sobre impactos sociais, ambientais e climáticos até então ignoradas nos documentos obrigatórios. A novidade foi tema de debate promovido pela Capital Aberto e o escritório Blanchet Advogados na semana passada, que trouxe como convidados a diretora da CVM Flávia Sant´Anna Perlingeiro e Carlos Takahashi, vice-presidente da Anbima. No encontro, Perlingeiro deixou claro: “A Resolução 59 não é nem um ponto de partida nem de chegada do regulador. É uma etapa no caminho.”
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As movimentações que antecederam a iniciativa da CVM foram inspiradoras. Em julho de 2021, a B3 refez o questionário do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) para adaptá-lo às necessidades de informações dos investidores sobre os aspectos ambiental (environmental), social (social) e de governança (governance) da atuação das companhias — as três dimensões que compõem a sigla ESG. Dois meses depois, o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central lançaram normas de divulgação para o sistema financeiro. No palco internacional, o movimento havia sido intensificado um ano antes por ação do World Economic Forum, que centrara a divulgação das informações financeiras em quatro P’s: pessoas, planeta, prosperidade e princípios de governança. Em novembro passado, foi a vez de a IFRS Foundation criar o International Sustainability Standards Board (ISSB), que tem como missão desenvolver uma base global padronizada para divulgação de informações ESG. “O mundo está correndo atrás de como essas informações devem ser medidas e divulgadas”, diz Gabriela Blanchet, sócia do Blanchet Advogados. “É uma transformação cultural.”
As regras da Resolução 59 da CVM aprofundam as informações requeridas pelo chamado formulário de referência, documento que reúne, anualmente, os principais dados das empresas sob jurisdição da autarquia. “Podemos dizer que, de forma geral, os novos requisitos buscam ampliar a visão do investidor”, explica Richard Blanchet, sócio do Blanchet Advogados. Se antes era solicitada a divulgação dos riscos socioambientais, por exemplo, agora será preciso tratar dos riscos sociais, ambientais e climáticos e revelar se essas informações são auditadas ou não. A declaração do CEO sobre a situação econômico-financeira da companhia deverá passar a incluir as atividades na área da sustentabilidade.
A CVM passou a exigir ainda que as empresas comuniquem, no formato “pratique ou explique”, se divulgam informações ESG no relatório anual, assim como a metodologia e as referências utilizadas. E foi direto ao ponto no tópico da diversidade: pediu mais transparência sobre a presença de minorias nos conselhos de administração e fiscal, além de entre os empregados, e se há compromisso de evoluir no tema. Também passou a questionar se são adotados os critérios ESG nos programas de remuneração. “Essas informações não serão acompanhadas somente pelo regulador, mas pelo investidor. O ecossistema está sendo ouvido”, afirma Takahashi, da Anbima.
“Não queremos ficar para trás”
A iniciativa da CVM causou reboliço entre participantes do mercado. Polarizada, a audiência pública sobre a nova regra levantou mais de 50 comentários, alguns carregados de indignação. As alterações no formulário de referência que englobaram os aspectos ambientais, sociais e de governança surgiram, ironicamente, no escopo de uma série de revisões no conteúdo divulgado pelas companhias com vistas a reduzir o que os reguladores denominam custo de observância. Em outras palavras, os planos eram suavizar as exigências para as companhias, mas na prática elas ganharam mais obrigações. “A redução do custo de observância não significa uma pedra no caminho da regulação”, argumenta Perlingeiro. A proteção do investidor se dá pela transparência, e atender às novas demandas de informação era inadiável, inclusive para alinhamento com a conduta internacional. “A pandemia mostrou a urgência de medidas no campo da sustentabilidade. Não poderíamos deixar o mercado brasileiro para trás”.
E a CVM tem claros os próximos passos que pretende dar. Estão sendo gestadas novas regras para fundos imobiliários e para as ofertas públicas de distribuição de títulos e valores mobiliários que vão contemplar obrigações de divulgação de informações ESG. Com o passar do tempo, o plano é partir para as etapas de fiscalizar e punir. “Por enquanto, nosso enfoque é no entendimento, na construção e na educação sobre o modelo. Mas a partir do momento em que normas estiverem testadas, será diferente. As informações prestadas no formulário de referência têm de estar corretas e, se houver dissonância, vai existir punição”, alerta a diretora da CVM.
Detetives em campo
A Securities and Exchange Commission (SEC), reguladora do mercado de capitais norte-americano, já chegou lá. No começo de março, anunciou a criação de uma força tarefa voltada às questões ESG e climáticas em sua divisão de fiscalização. Com uma equipe de 22 pessoas no projeto, a SEC pretende identificar proativamente desvios de conduta das companhias relacionados a essa temática — o chamado greenwashing. Por meio de análises sofisticadas de dados, espera capturar lacunas relevantes de informação ou afirmações mentirosas nas divulgações. “A força-tarefa nos permitirá policiar melhor o mercado, perseguir condutas fraudulentas e proteger os investidores”, afirma a vice-diretora de enforcement Kelly L. Gibson. Os trabalhos do grupo incluirão análise de dicas, referências e reclamações vindas de canais de denúncias (“whistleblowers”).
Obter mais informações dos emissores é outro objetivo da SEC. Também em março a agência submeteu a audiência pública, com duração até 20 de maio, uma proposta para exigência de reporte sobre riscos climáticos que tenham potencial de impactar os negócios, incluindo as emissões de gases de efeito estufa. O objetivo é oferecer informações mais consistentes, comparáveis e úteis aos investidores, além de tornar as obrigações de divulgação mais claras para os emissores.
O próximo alvo
Tudo indica que esse movimento não terminará nas companhias, o que significa dizer que é bom os administradores se prepararem: eles deverão ser o próximo alvo, avisa Richard Blanchet. Conselheiros da Shell foram recentemente processados pela organização de direito ambiental ClientEarth por não terem preparado adequadamente a companhia para uma política de carbono zero. Considerada a primeira do tipo, a ação trazida por investidores ativistas pleiteia que 13 conselheiros sejam pessoalmente responsabilizados por falhar no atendimento ao Acordo de Paris. Na assembleia geral de 2021, 30% dos acionistas haviam votado contrariamente ao board para defender as metas de emissão do tratado, que prevê limitar o aumento da temperatura global ao patamar máximo de 2 graus Celsius.
Falhas — ou, pior, mentiras — na divulgação de informações tampouco serão perdoadas. Na semana passada, a SEC acusou a mineradora Vale de violar as leis dos Estados Unidos ao fazer divulgações falsas e enganosas sobre a segurança de suas barragens antes da tragédia que matou 270 pessoas em Brumadinho, em 2019. Havia três anos, segundo a SEC, a companhia manipulava auditorias de segurança e obtinha certificados fraudulentos. Além do desastre humanitário, o colapso de Brumadinho causou enormes prejuízos ambientais e sociais e levou à perda de mais de 4 bilhões de dólares em valor de mercado para os investidores da Vale. Não é difícil imaginar que a Resolução 59, se já existisse na época, teria sido mais uma vidraça para a mineradora na análise posterior dos fatos. Para além da forma de divulgar, portanto, cabe aos executivos das companhias refletirem sobre o conteúdo ESG dos seus novos formulários de referência. Elas terão até janeiro de 2023 para entender como fazer a coisa certa.
O foco aprimorado em ESG é uma prioridade, empresas com boas práticas ambientais e sociais, possuem mais chance de se destacar no mercado.
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